CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Artigo 1.º
Objecto
- 1. A presente Lei estabelece as normas relativas à disposição gratuita de células, tecidos e órgãos e partes do corpo humano, quer em vida como depois da morte, bem como os demais procedimentos com vista à sua transplantação no organismo humano.
- 2. A transfusão de sangue e derivados, a doação de óvulos e de esperma, a transferência e a manipulação de embriões, assim como a doação e colheita de células, tecidos e órgãos do corpo humano para efeitos de investigação científica são regulados em legislação especial.
Artigo 2.º
Âmbito
A presente Lei aplica-se a todos os cidadãos nacionais, aos apátridas e aos estrangeiros residentes em Angola, na qualidade de dadores ou de beneficiários de transplante.
Artigo 3.º
Definições
- Para efeitos da presente Lei, entende-se por:
- a)- «Cadáver», restos integrados de um ser humano, do qual já se tenha produzido a morte encefálica;
- b)- «Células», células individuais de origem humana ou um grupo de células de origem humana quando não estão unidas por nenhuma forma de tecido conjuntivo;
- c)- «Derivados», produtos obtidos de tecidos, que tenham aplicação diagnóstica e terapêutica;
- d)- «Disposição», acto ou os actos relativos à obtenção, preservação, preparação, utilização, subministro e destino final das células, tecidos, órgãos e seus derivados, produtos e cadáveres;
- e)- «Dador», ser humano que, durante a sua vida ou após a sua morte, por sua livre e espontânea vontade, ou pela dos seus parentes, se lhe extraem células, tecidos e órgãos, derivados ou material anatómico, com o objectivo de serem utilizados para transplante em outros seres humanos, para efeitos terapêuticos;
- f)- «Inabilitado», ser humano destituído das suas plenas funções mentais;
- g)- «Órgão», entidade morfológica, composta por um agrupado de tecidos diferentes, que concorrem para o desempenho da mesma função;
- h)- «Receptor», ser humano, em cujo corpo se devem implantar as células, tecidos e órgãos, derivados ou qualquer outro material anatómico, mediante procedimentos terapêuticos;
- i)- «Ser Humano», todos os indivíduos da espécie humana;
- j)- «Substância Regenerável», células ou tecidos que, após a sua remoção parcial se multiplicam e proliferam de modo a reconstituírem a função existente da sua remoção.
- k)- «Substância não Regenerável», células ou tecidos que após a sua remoção parcial, não reconstituem a função existente antes da sua remoção parcial, mesmo havendo alguma capacidade de proliferação celular
- l)- «Tecido», entidade morfológica, composta por um agrupado de células da mesma natureza e com a mesma função;
- m)- «Transplante», substituição, com fins terapêuticos de células, tecidos e órgãos, derivados ou material anatómico, por outros, provenientes de um ser humano dador, vivo ou morto.
Artigo 4.º
Órgão de Coordenação e Supervisão da Transplantação
- 1. O Órgão de Coordenação e Supervisão de Transplantação é o ente responsável por coordenar e supervisionar todo o processo de recolha e distribuição das células, tecidos e órgãos para transplante.
- 2. Compete ao Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo, a criação do Órgão referido no ponto anterior, bem como definir as suas atribuições e competências específicas.
Artigo 5.º
Registo Nacional de Dadores
Os dadores devem estar devidamente controlados, mediante a sua inscrição numa base de dados especialmente criada para o efeito, designada Registo Nacional de Dadores.
Artigo 6.º
Registo Nacional de Candidatos a Receptores para Transplante
Os candidatos a receptores para transplante devem estar devidamente inscritos numa base de dados especialmente criada para o efeito, designada Registo Nacional de Candidatos a Receptores para transplante.
Artigo 7.º
Estabelecimentos Autorizados
- 1. A extracção e transplante de células, tecidos, órgãos e derivados ou de qualquer outro material anatómico de seres humanos, bem como a sua utilização para fins terapêuticos, só podem ser efectuados em estabelecimentos e centros hospitalares públicos ou privados, autorizados pelo Departamento Ministerial responsável pelo Sector da Saúde, ouvido o Órgão de Coordenação e Supervisão.
- 2. Os estabelecimentos e centros hospitalares previstos no número anterior devem dispor de instalações, equipamentos adequados de transplante e de equipas, médico-cirúrgicas especializadas para o efeito.
- 3. Os estabelecimentos acima referidos são objecto de reanálise do seu desempenho, periodicamente, podendo a referida autorização ser suspensa ou retirada.
Artigo 8.º
Verificação da Admissibilidade da Colheita para Transplante
- 1. Em cada estabelecimento hospitalar onde se realize a colheita de enxertos deve ser criada, pelo Órgão de Coordenação e Supervisão homologado pelo Departamento Ministerial responsável pelo Sector da Saúde, uma Comissão de Ética para a Saúde.
- 2. A Comissão de Ética para a Saúde é supervisionada pelo Conselho Nacional de Bioética.
- 3. À Comissão referida nos números anteriores cabe emissão de parecer vinculativo em caso de dádiva e colheita em vida de órgão, tecidos e células para fins terapêuticos e de transplante.
- 4. A organização e funcionamento, bem como as competências deste Órgão, são reguladas por lei própria.
Artigo 9.º
Confidencialidade da Identidade do Dador e do Receptor
Salvo o consentimento expresso do dador e do receptor é proibido revelar a identidade do dador e do receptor de células, tecidos e órgãos
Artigo 10.º
Gratuidade
As células, tecidos e órgãos para efeitos terapêuticos ou de transplante devem ser doados, sendo proibida a sua comercialização.
CAPÍTULO II
COLHEITA E TRANSPLANTE DE CÉLULAS, TECIDOS E ÓRGÃOS HUMANOS ENTRE VIVOS
Artigo 11.º
Admissibilidade
- 1. Para efeitos da presente Lei, só é autorizada a colheita em vida, de substâncias regeneráveis.
- 2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, só é permitida a doação de células, tecidos e órgãos entre vivos de enxertos não regeneráveis quando, entre dador e receptor, existir uma relação de parentesco até ao segundo grau da linha recta, ou do segundo grau da linha colateral, de casamento ou de união de facto reconhecida.
- 3. Os menores, em vida, só podem doar substâncias regeneráveis, desde que o receptor seja irmão ou irmã do dador.
- 4. É proibida a extracção e transplante total de órgãos únicos ou vitais, cuja separação possa causar a morte, a incapacidade física e ou mental, total e permanente, ou que provoque a mutilação ou deformação inaceitável do dador.
Artigo 12.º
Obrigatoriedade
- 1. O médico a quem esteja incumbido a tarefa de efectuar o transplante deve explicar, detalhadamente, ao dador e ao receptor os riscos que implicam a operação e as suas sequelas.
- 2. O dador deve dar o seu consentimento por escrito e se for menor, com capacidade de entendimento e manifestação de vontade, o consentimento é dado cumulativamente pelo mesmo e pelos pais ou tutor.
- 3. Em caso de desacordo, entre os progenitores, o consentimento depende de uma autorização judicial.
- 4. Os inabilitados só podem proceder à doação mediante autorização judicial e desde que não haja oposição dos mesmos.
- 5. O consentimento previsto nos números anteriores pode ser revogado, pelo dador, a qualquer momento.
- 6. No consentimento, o dador deve especificar expressamente as células, tecidos ou órgãos que vai doar.
Artigo 13.º
Requisitos do Dador em Vida
- 1. O dador deve reunir os seguintes requisitos:
- a)- Ser maior de idade, excepto o previsto no n.º 3 do artigo 11.º da presente Lei
- b)- Apresentar um relatório médico actualizado e favorável, sobre o seu estado de saúde, incluindo o mental;
- c)- Ter compatibilidade com o receptor, de acordo com os exames médicos efectuados;
- d)- Ter recebido informação detalhada e completa, sobre os riscos da operação, suas eventuais consequências, assim como as probabilidades de êxito do receptor;
- e)- Ter expresso por escrito e na presença de duas testemunhas, de forma voluntária, sem qualquer tipo de coacção, quer seja física, moral ou psicológica, a sua total disponibilidade de doar as células, tecidos ou órgãos;
- f)- Estar inscrito no Registo Nacional de Dadores
- 2. A disponibilidade de doar as células, tecidos ou órgãos, prevista na alínea e) do número anterior é susceptível de ser actualizada, até à data da extracção, podendo ser revogada a qualquer altura.
- 3. A doação não faz emergir nenhum direito subjectivo do dador em relação ao receptor.
- 4. O dador tem direito à assistência médica até ao seu completo restabelecimento e a ser indemnizado pelos eventuais danos sofridos no decurso do processo de extracção independentemente da culpa.
CAPÍTULO III
COLHEITA E TRANSPLANTE DE TECIDOS E ÓRGÃOS HUMANOS DEPOIS DA MORTE
Artigo 14.º
Certificação da Morte Cerebral
- 1. Compete ao Titular do Poder Executivo, ou a quem este delegar, sob proposta da Ordem dos Médicos de Angola, enunciar e manter actualizado, de acordo com os progressos científicos que venham a registar-se, o conjunto de critérios e regras de semiologia médico-legal idóneos para a verificação da morte cerebral.
- 2. Na verificação da morte não deve intervir médico que integre a equipa de transplante.
Artigo 15.º
Extracção
- 1. A retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano para efeitos de transplante, depois da morte, deve ser feita nos termos do artigo 7.º da presente Lei.
- 2. O médico que efectua a colheita de tecidos e órgãos é obrigado a lavrar um auto contendo a identificação do falecido, os tecidos e órgãos colhidos e o destino dado aos mesmos.
- 3. É sempre admitida a presença do médico de confiança da família do falecido no acto da colheita de tecidos e órgãos.
Artigo 16.º
Doação Póstuma
- 1. Os angolanos, os apátridas e os estrangeiros residentes em Angola, salvo manifestação de vontade expressa em contrário, são potenciais dadores, depois de declarada a morte cerebral, desde que constem do Registo Nacional de Dadores, ou se houver manifesta vontade da família.
- 2. Na qualidade de potenciais dadores, os angolanos, os apátridas e os estrangeiros residentes podem, em vida, expressamente definir as células, tecidos e órgãos que pretendem doar.
Artigo 17.º
Remoção a Menores e Incapazes
A remoção de células, tecidos e órgãos de cadáveres de menores ou incapazes é feita com prévia autorização dos pais, tutores ou parentes.
Artigo 18.º
Proibição de Remoção
- É proibida:
- a)- A remoção de células, tecidos e órgãos de cadáveres, cuja morte tenha ocorrido sem assistência médica ou óbito por causa não definida;
- b)- A remoção de células, tecidos e órgãos de cadáveres não identificados;
- c)- A remoção de células, tecidos e órgãos de cadáveres de menores ou incapazes quando não haja autorização dos pais, parentes ou tutores.
Artigo 19.º
Mutilações
- 1. Durante a remoção de células, tecidos e órgãos deve-se evitar as mutilações ou dissecações dispensáveis, que podem prejudicar a realização da autópsia, se ela tiver lugar após a remoção.
- 2. Os restos mortais são condignamente recompostos e entregues aos parentes para serem sepultados.
CAPÍTULO IV
SANÇÕES
Artigo 20.º
Extracção e Transplante não Autorizado
- É punido, nos termos da legislação penal em vigor, todo o profissional que:
- 1. Extrair células, tecidos, órgãos ou quaisquer partes de cadáver humano e realizar o transplante em desacordo com as disposições da presente Lei.
- 2. Extrair células, tecidos, órgãos ou quaisquer partes se o acto for praticado contra pessoa viva e resulte para o ofendido:
- a)- Incapacidade para o trabalho;
- b)- Perigo de vida;
- c)- Deformidade permanente de membro, sentido ou função;
- d)- Aceleração ou interrupção de parto;
- e)- Enfermidade incurável.
Artigo 21.º
Venda
Aquele que vender ou obtiver qualquer compensação com a venda de células, tecidos e órgãos de ser humano é punido nos termos da legislação penal em vigor.
Artigo 22.º
Denúncia
- 1. Qualquer pessoa que tenha conhecimento da extracção de células, tecidos e órgãos ou o transplante dos mesmos com fins comerciais ou não, pode denunciar o facto.
- 2. Tratando-se de autoridade pública ou profissional de saúde, a denúncia é obrigatória.
- 3. A violação do previsto no número anterior por parte de autoridade pública ou profissional de saúde é punida como crime de desobediência, nos termos da legislação penal em vigor.
CAPÍTULO V
DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS
Artigo 23.º
Proibição de Anúncio
- É vedada a utilização dos meios de comunicação social com anúncios onde conste o seguinte:
- a)- Apelo público de doação de tecidos ou órgãos para determinada pessoa, excepto nos casos de transfusão de sangue ou nos casos de transplante de medula óssea, salvaguardando-se o anonimato do receptor;
- b)- Apelo público para arrecadação de fundos para o financiamento de transplante de determinada pessoa.
Artigo 24.º
Campanha de Sensibilização
O Departamento Ministerial responsável pelo Sector da Saúde deve anualmente organizar, em colaboração com os Órgãos de Comunicação Social, campanhas de sensibilização orientadas a promover a cultura de doação de órgãos.
Artigo 25.º
Dúvidas e Omissões
As dúvidas e as omissões resultantes da interpretação e da aplicação da presente Lei são resolvidas pela Assembleia Nacional.
Artigo 26.º
Entrada em Vigor
A presente Lei entra em vigor à data da sua publicação
Vista e aprovada pela Assembleia Nacional, em Luanda, aos 13 de Agosto de 2019.
O Presidente da Assembleia Nacional, Fernando da Piedade Dias dos Santos.
Promulgada, aos 6 de Setembro de 2019.
Publique-se.
O Presidente da República, JOÃO MANUEL GONÇALVES LOURENÇO