CAPÍTULO I
Disposições Gerais
Artigo 1.°
Objecto
- A presente lei visa:
- a) garantir a protecção e promoção integral da saúde das pessoas mediante a adopção de medidas necessárias para a prevenção, controlo, tratamento e investigação do VIH/SIDA;
- b) estabelecer os direitos e deveres das pessoas infectadas pelo VIH ou doentes da SIDA, do pessoal da saúde e outro em situação de risco ou contágio, bem como da população em geral.
Artigo 2.º
Definições
- Para efeitos da presente lei, entende-se por:
- a) Anti-retroviral (ARV) - medicamento que diminui a capacidade de agressão do vírus -VIH - retardando a progressão da imunodeficiência e/ou restaurando, tanto quanto possível, a imunidade, aumentando o tempo e a qualidade de vida da pessoa infectada;
- b) Anticorpos - substâncias que se formam no organismo para reconhecer/detectar os agentes estranhos (antigénios) que penetrem no organismo;
- c) Biossegurança - conjunto de medidas preventivas destinadas a manter o controlo de factores de risco laboral procedentes de agentes biológicos, físicos ou químicos que podem por em risco a segurança dos trabalhadores, pacientes, visitantes ou do meio ambiente;
- d) Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA (CNLS) - organismo multissectorial e pluridisciplinar, criado para coordenar e orientar a luta contra o VIH/SIDA e as grandes endemias, bem como estabelecer a necessária articulação a nível internacional;
- e) Diagnóstico - determinação de uma doença através de sintomas e sinais sugestivos que o indivíduo apresenta, assegurado pela confirmação laboratorial e/ou de imagem;
- f) Evolução crónica - conjunto de transformações de carácter progressivo que demoram muito tempo no decorrer de uma doença;
- g) Condição serológica - condição em que se encontra o plasma/sangue de um individuo são ou doente;
- h) Evolução da doença - sequência de transformações lentas ou rápidas que ocorrem numa doença;
- i) Infectado - indivíduo que se encontra contagiado por um agente infeccioso e que apresenta ou não sinais de doença;
- j) Infeccioso - que produz infecção (contagiosa/transmissível);
- k) Infecção - acção originada por agentes patogénicos dentro de um organismo vivo;
- l) Infecções de Transmissão Sexual (ITS) - infecções/doenças que se transmitem fundamentalmente através de relações sexuais desprotegidas, isto é, sem uso de preservativo;
- m) VIH - Vírus de Imunodeficiência Humana;
- n) Infecções Oportunistas (IO) - infecções que se aproveitam da presença de doenças debilitantes do organismo para se acomodarem a eles e se manifestarem;
- o) Seropositividade - condição do indivíduo com diagnóstico do plasma/sangue positivo, nomeadamente em relação ao VIH;
- p) Seropositivo - indivíduo infectado com o vírus da SIDA/VIH - que não está doente, também chamado de portador do VIH;
- q) Material-perfuro-cortante - conjunto de objectos utilizados para cortar e furar algo. Ex: lâminas, agulhas. bisturis, etc;
- r) Material biológico - qualquer produto proveniente de um ser vivo que pode ser manuseado ou manipulado e que pode conter material contaminante, susceptível de causar infecção ou doença;
- s) Prescrição - receita médica;
- t) Terapêutica - tratamento;
- u) SIDA - Síndroma de Imunodeficiência Adquirida - conjunto de sintomas e sinais que caracterizam a infecção causada pelo vírus VIH;
- v) Vigilância epidemiológico - mecanismo mediante o qual se controla e avalia a evolução de doenças ao longo de um determinado período
Artigo 3.º
Responsabilidade do Estado
- 1. Na luta contra o Vírus da Imunodeficiência Humana - VIH e a Síndroma de Imunodeficiência Adquirida - SIDA, incumbe ao Estado nomeadamente o seguinte:
- a) assumir, através do Governo, a luta contra o VIH/SIDA, como de interesse nacional, entendida nos aspectos de prevenção e controlo da propagação do VIH, considerando como áreas fundamentais a informação, educação, o tratamento, a investigação da infecção e protecção da população em geral, o respeito pelos direitos e deveres das pessoas infectadas pelo VIH e doentes da SIDA em qualquer nível de atenção;
- b) prever no orçamento do fundo verbas destinadas a acções de prevenção e controlo das IO, ITS e VIH/SIDA;
- c) formular e executar políticas sócio-económicas que visem a redução dos riscos da infecção e agravos nos infectados e doentes;
- d) melhorar o sistema de saúde garantindo o reforço institucional fundamentalmente dos recursos humanos e financeiros, a compra e distribuição de medicamentos para as Infecções Oportunistas - IO e Anti-retrovirais - ARV para fazer face às necessidades no domínio da prevenção e tratamento das Infecções de Transmissão Sexual - ITS/VIH/SIDA;
- e) garantir serviços públicos de saúde e acções para prevenção, tratamento e controlo das IO/ITS/VIH/SIDA, com base no princípio de acesso igualitário e universal para todos;
- f) garantir a promoção e a protecção dos direitos das crianças infectadas, doentes ou afectadas pelo VIH/SIDA;
- g) garantir sangue seguro, ficando obrigado a indemnizar as pessoas que eventualmente forem contaminadas por sangue e/ou seus derivados não previamente testados.
- 2. O disposto no número anterior aplica-se igualmente a entidades privadas.
Artigo 4.º
Coordenação
- 1. Cabe à Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA a coordenação e orientação das acções de luta contra a SIDA.
- 2. A estrutura e funcionamento da Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA, bem como outros órgãos afins, rege-se por regulamento próprio.
CAPÍTULO II
Direitos e Deveres das Pessoas Infectadas pelo VIH/SIDA
SECÇÃO I
Direitos das Pessoas Infectadas
Artigo 5.º
Direitos
- Toda pessoa infectada pelo VIH/SIDA tem direito a:
- a) assistência sanitária pública gratuita e medicamento anti-retrovirais - ARV;
- b) informação sobre a evolução da doença e as opções e programas de tratamento, bem como tomar decisão sobre as opções apresentadas;
- c) informar sobre as redes e programas de apoio psico-social e de aconselhamento existentes;
- d) inserção na comunidade sem discriminação;
- e) trabalho, emprego e formação profissional;
- f) confidencialidade em relação à informação referente ao seu estado de saúde;
- g) acesso ao sistema de educação sem discriminação;
- h) privacidade da sua vida;
- i) livre circulação e permanência em locais públicos;
- j) protecção pelos organismos competentes quando se encontre em situação que ponha em perigo a sua integridade física.
Artigo 6.º
Direitos das pessoas privadas de liberdade
- 1. As pessoas privadas de liberdade não devem ser submetidas a testes obrigatórios para detecção da infecção pelo VIH, salvo aquelas cujo processo judicial ou a condição médica o exija, devendo manter-se a confidencialidade das analises e os seus resultados.
- 2. As pessoas privadas de liberdade, infectadas por VIH ou doentes de SIDA, têm o direito a receber assistência médica e medicamentosa imediatamente requerida em condições que não lesem a sua dignidade ou impossibilitem o tratamento.
- 3. A violação do disposto no presente Artigo é punível nos termos a definir por regulamento.
Artigo 7.º
Direitos do trabalhador
- 1. Nenhum trabalhador deve ver a sua situação laboral prejudicada devido ao seu estado serológico relativo ao VIH/SIDA.
- 2. Por decisão médica e em função do seu estado de saúde, o trabalhador pode ver alterada a sua situação laboral, respeitada a igualdade de oportunidades, mérito e capacidade para executar o trabalho mantendo-se o salário e outras regalias sociais.
- 3. O empregador é obrigado a educar, informar, formar e sensibilizar os seus trabalhadores sobre o VIH/SIDA.
- 4. A violação do disposto no presente Artigo é punível nos termos a definir por regulamento.
Artigo 8.º
Ausências justificadas
- 1. As ausências do trabalhador infectado pelo VIH/SIDA no local de trabalho para receber assistência médica e medicamentosa por um período não superior a 120 dias, consideram-se justificadas por motivo de doença, nos termos da legislação em vigor.
- 2. Ao trabalhador que se encontre nas condições previstas no número anterior é garantida a protecção contra o despedimento, redução salarial ou qualquer outra forma de discriminação laboral.
- 3. O trabalhador doente da SIDA, que se ausentar do local do trabalho por 180 dias seguidos ou interpolados, tem direito a receber o seu salário integral, desde que justificadas as faltas através de documento médico.
Artigo 9.º
Apresentação do teste
A apresentação do teste do VIH/SIDA não constitui requisito para o processo de candidatura ao emprego, para o financiamento bancário e para a manutenção da relação jurídico-laboral nem para o ingresso nos órgãos de defesa e segurança.
Artigo. 10.º
Condição serológica
Os profissionais de saúde que detectem a seropositividade de um cidadão têm o dever de o informar sobre o carácter infeccioso da doença, bem como das vias e formas de transmissão e métodos de prevenção.
Artigo 11.º
Exposição ocupacional
- 1. A contaminação pelo VIH/SIDA resultante do exercício da actividade profissional devidamente comprovada pelas entidades competentes é considerada doença profissional de evolução crónica grave, nos termos da legislação em vigor.
- 2. Qualquer trabalhador que no exercício das suas funções se infecte com o VIH, tem direito a uma indemnização a ser fixada nos termos a regulamentar.
Artigo 12.°
Confidencialidade
- 1. As instituições profissionais de saúde e outros que conheçam ou atendam pessoas infectadas pelo VIH/SIDA são obrigados a guardar sigilo sobre a consulta, diagnóstico e seguimento, excepto quando se trate de menores de idade, caso em que devem ser informados a quem sobre eles exerça a autoridade paternal.
- 2. A confidencialidade não pode ser invocada, quando se tratar de uma informação não nominal dos casos detectados.
Artigo 13.°
Violação do segredo profissional
- 1. Quem por razões do seu emprego ou profissão revele a situação de seropositividade de um cidadão, excepto naqueles casos previstos na presente lei, é punido nos termos do Artigo 290.° do Código Penal.
- 2. A quebra do sigilo só é permitida nos seguintes casos:
- a) quando houver autorização do paciente ou por dever legal, nomeadamente notificação às autoridades sanitárias e preenchimento de atestado de óbito;
- b) por justa causa como protecção à vida de terceiros, nomeadamente cônjuge, parceiro sexual ou membros de grupos toxicodependentes, caso o paciente se recuse em fornecer-lhes a informação quanto à condição de infecção.
SECÇÃO II
Deveres das Pessoas Infectadas
Artigo 14.°
Deveres
- As pessoas infectadas pelo VIH/SIDA devem:
- a) praticar a sua sexualidade com responsabilidade;
- b) adoptar hábitos e comportamentos que limitem a possibilidade de contágio de outrem;
- c) usar o preservativo quando mantiver relações sexuais;
- d) Informar às pessoas com quem têm ou pretendam ter relações sexuais, sobre o seu estado serológico;
- e) informar sobre a sua situação ao pessoal de saúde que o atende, para que os serviços se administrem adequadamente e sejam tomadas as competentes medidas de biossegurança;
- f) informar ao seu cônjuge ou parceiro sexual sobre a sua condição serológica.
Artigo 15.º
Transmissão
- 1. A transmissão do VIH de forma dolosa constitui crime e é punido nos termos do Artigo 353.° do Código Penal.
- 2. Aquele que por negligencia, inconsideração ou falta de observância de regulamentos infectar outrem, é punido nos termos do Artigo 368.° do Código Penal.
CAPÍTULO III
Informação, Educação e Investigação
Artigo 16.º
Órgãos de comunicação social
Os órgãos de comunicação social públicos e privados devem assegurar a emissão de informação sobre as ITS/VIH/SIDA de forma gratuita.
Artigo 17.º
Informação
- A população deve:
- a) ser informada e educada sobre os aspectos relativos às ITS/VIH/SIDA em conformidade com as directrizes formuladas pela Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA e Grandes Endemias;
- b) ser informada e educada contra a discriminação e estigmatização das pessoas com o VIH/SIDA.
Artigo 18.°
Educação
- 1. O Ministério da Educação deve proceder à introdução de conteúdos referentes à sexualidade e ITS/VIH/SIDA em todos os currículos escolares.
- 2. As instituições de ensino e os locais de trabalho devem acatar as normas vigentes em matéria de informação e educação sobre o VIH/SIDA.
- 3. Os órgãos de inspecção e fiscalização do Estado devem velar pelo cumprimento do disposto no número anterior.
- 4. O não cumprimento de disposto no n.º 3 é punível com multa a definir por regulamento próprio.
- 5. O valor resultante das multas destina-se ao Fundo da Luta Contra a Sida.
Artigo 19.º
Noção de Investigação
Entende-se por investigação ou pesquisa a classe de actividade que visa a produção de conhecimentos e de tecnologias no campo aplicado, operacional e da ciência básica, reconhecidos cientificamente por seus métodos de observação, técnicas e interferências.
Artigo 20.º
Investigação em seres humanos
Toda a investigação que envolva seres humanos, seja individual ou colectiva, deve ser submetida em protocolos específicos de pesquisa, em língua portuguesa, à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.
Artigo 21.°
Comissão Nacional de Ética e Pesquisa
O Ministério da Saúde deve, no prazo de 90 dias após à entrada em vigor da presente lei, criar a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa que deve estabelecer em dispositivo especial as normas que devem ser observadas em relação à investigação, testes com vacinas, uso de placebo, consentimento informado, entre outros aspectos éticos inerentes à pesquisa com seres humanos.
CAPÍTULO IV
Prevenção, Controlo e tratamento
SECÇÃO I
Prevenção e Controlo
Artigo 22.º
Testes de detecção dos anticorpos anti-VIH
- 1. É proibida a realização de testes para o diagnóstico de infecção por VIH/SIDA de forma obrigatória, salvo nos seguintes casos:
- a) quando, por consideração do médico, o qual conste no expediente clínico, exista necessidade de se efectuar o teste para fins exclusivamente relacionados com a saúde do paciente, a fim de contar com um melhor diagnóstico para o seu tratamento;
- b) quando se trate de doação de sangue e hemoderivados, leite materno, sémen, órgãos e tecidos humanos;
- c) quando se requeira para fins processuais penais e com prévia ordem da autoridade judicial competente.
- 2. Os exames serológicos do VIH/SIDA a menores de idade só são realizados mediante a permissão dos pais ou responsáveis legais do menor que, para o efeito, devem ser informados da necessidade do teste e prestam o seu consentimento escrito para a realização do exame, salvo as excepções previstas na presente lei e na legislação em vigor, respeitando-se sempre o interesse superior da criança.
SECÇÃO II
Tratamento e biossegurança
Artigo 23.º
Sangue seguro
- 1. É dever do Estado garantir sangue seguro, ficando obrigado a indemnizar as pessoas que eventualmente forem contaminadas por sangue e/ou seus derivados não previamente testado nas unidades hospitalares públicas.
- 2. Os produtos sanguíneos para transfusão devem obedecer as normas do Centro Nacional de Sangue.
- 3. A transfusão de sangue em inobservância do disposto no número anterior é punível nos termos do n.° 2 do Artigo 15.º da presente lei.
Artigo 24.º
Doação de sangue e órgãos
- 1. As pessoas infectadas pelo VIH/SIDA não devem doar sangue e/ou seus derivados, leite materno, órgãos ou tecidos para uso terapêutico, salvo no âmbito de investigações científicas.
- 2. A violação ao disposto no número anterior é punível nos termos do n.º 1 do Artigo 15.° da presente lei.
Artigo 25.º
Mecanismos de monitorização e controlo
O Ministério da Saúde deve estabelecer mecanismos uniformes de controlo e registo apropriados para vigilância epidemiológica que garantam o anonimato e todas as outras situações excepcionais previstas por lei e/ou a definir segundo orientações da Organização Mundial da Saúde.
Artigo 26.º
Laboratórios
Os laboratórios ou bancos de sangue onde se realizem exames para diagnósticos de VIH devem estar devidamente registados na Direcção Nacional de Saúde Pública e estarem obrigados a manter um sistema actualizado de registo e informação para as autoridades sanitárias.
Artigo 27.º
Medicamentos
- 1. Cabe ao Ministério da Saúde padronizar os anti-retrovirais a serem utilizados em cada estádio da infecção e da doença, assim como regulamentar a sua comercialização.
- 2. Os medicamentos anti-retrovirais ARV são financiados pelo Estado.
- 3. A propaganda de medicamentos ou tratamento para a SIDA deve obedecer às normas estabelecidas pelo Ministério da Saúde.
Artigo 28.º
Lixo Hospitalar
O Estado deve criar mecanismos para tratamento do lixo hospitalar e material biológico de acordo com as normas estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde.
Artigo 29.º
Isenções
Os reagentes, medicamentos anti-retrovirais ARV, medicamentos de doenças oportunistas, assim como outros materiais adquiridos pelo Estado, directa e exclusivamente utilizados no âmbito da luta contra o VIH/SIDA, ficam isentos de quaisquer impostos ou taxas aduaneiras.
CAPÍTULO V
Disposições Finais
Artigo 30.º
Sanções
A violação ao disposto na presente lei implica sanções disciplinares, civis e criminais, nos termos da legislação aplicável.
Artigo 31.º
Dúvidas e omissões
As dúvidas e omissões suscitadas pela interpretação e aplicação da presente lei são resolvidas pela Assembleia Nacional.
Artigo 32.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor 120 dias após a sua publicação.
Vista e aprovada pela Assembleia Nacional, em Luanda, aos 24 de Junho de 2004.
Publique-se.
O Presidente da Assembleia Nacional, Roberto António Victor Francisco de Almeida.
Promulgado aos 11 de Outubro de 2004.
O Presidente da República, JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS.